Marley sempre!

Marley sempre!

Por que Bob Marley se tornou o artista mais influente do Terceiro Mundo.

Bob se tornou o artista mais influente do Terceiro Mundo porque sua música tinha uma causa. Ele tinha a habilidade de dizer poeticamente, em poucas palavras, o que a maioria das pessoas só consegue desenvolver em muitos parágrafos. Ele conseguia sintetizar os horrores do shitstem (trocadilho frequente na Jamaica que mescla system - sistema - e shit - merda) capitalista em uma estrofe, quando cantava "Meu Deus, analfabetismo é simplesmente uma máquina de fazer dinheiro" (trecho de "Slave Driver", do álbum Catch a fire). Ele era uma figura moral que transcendia o mero estrelato pop e tocava a divindade inerente a cada um de nós, conclamando uma elevação coletiva. Ele próprio, não ligava para dinheiro - era só uma ferramenta para ajudar as pessoas. Sozinho, ele sustentava 6 mil pessoas por mês! Suas inspirações viverão para sempre.

... Bob dizia que "todo governo na face da Terra é ilegal. Só a lei de Jah (Deus) é legal". "Eu sou um rebelde", Bob sempre dizia - os hippies também. Uma vez perguntaram a Bob, em Cleveland, 1979, como ele se sentiria se ele retornasse no ano seguinte e encontrasse o público repleto de "jovens brancos com dreadlocks". "Ótimo!", ele respondeu.

Apesar de ele ser filho de um branco Jamaicano, Bob se identificava com a raça negra. Era frustrante para ele que, nos anos 70, os negros americanos fossem tão antagônicos a tudo que os lembrava de suas raízes africanas - a maioria deles encarava a África como um continente atrasado e ingovernável. A música mais popular entre o público negro daquela época era um disco "cocainado", cujas letras não traziam nada para educar ou incitar a revolução. Para eles, os anos 60 (quando aconteceram os movimentos de afirmação negra e a luta pelos direitos civis) eram uma aberração, uma memória distante que a maioria preferia esquecer.

... Há uma longa discussão sobre os rumos que Bob trilharia nos anos 80...

"Nossa missão", ele disse a Desi Smith e à namorada Yvet Crichton, "é construir um estúdio na África, fazer hit atrás de hit, e virar número um lá. Depois, é só dar risada!". Definitivamente, o futuro dele era na África, para onde ele ansiava tanto por retornar. Mas ele ficou terrivelmente aborrecido pelo que ele viu em sua única visita à Etiópia, em 1978. Então, não há como dizer em que lugar da África ele teria ido parar. Há um excelente livro de "história alternativa" sobre o que poderia ter acontecido se Bob tivesse sobrevivido. É "Joseph: A rasta reggae fable", de Barbara Makeda Levi que, aliás, eu recomendo bastante.

Bob Marley estava definitivamente olhando além. Há inclusive rumores de que ele pretendia demitir Carly (bateria) e Familyman (baixo) e colocar uma sessão rítmica mais contemporânea, capaz de tocar ritmos internacionais. Ele explorou todos os tipos de música ao longo de sua carreira e após sua visita ao Brasil, ele até gravou uma bossa nova que, infelizmente, nunca foi lançada. Não tenho dúvida de que ele exploraria o afrobeat de Fela Kuti bem como outros ritmos africanos e internacionais.

 Bob Marley não gostava muito de conversar com jornalistas. A maioria de suas respostas era bastante genérica e ele nunca deixava que eles se aproximassem demais do lado mais complexo de sua personalidade.
O ápice de empolgação que ele teve em nossas entrevistas foi quando Hank o desafiou a falar sobre sua afiliação ao controverso credo rasta das Doze Tribos de Israel. No mais, ele ouvia basicamente as mesmas perguntas milhares de vezes. Nos últimos anos de sua carreira - quando ele lutava contra o câncer que descobrira em 1977 - ele deixava que outras pessoas da banda, que falavam um inglês mais tradicional, como Tyrone Downie e Junior Marvin, respondessem por ele. Virtualmente, ele nunca ficava sozinho e sua exaustão era mais do que evidente quando eu viajei com ele. Mas ele era generoso demais com seu tempo, o que, do meu ponto de vista, contribuiu para que ele morresse cedo. Durante as 64 horas de entrevistas que fiz há 20 anos com Bunny Wailer para a agora abortada autobiografia dele, Bunny disse a mim e a Leroy Jodie Pierson que a única coisa negativa que ele se lembrava acerca de Bob era que ele "não conseguia dizer não para ninguém". Então, se você tivesse a paciência de esperar por ele, ele sempre acaba lhe dando o que você precisasse para uma matéria ou sessão de fotos.

Peter Tosh disse várias vezes que ele ensinou música a Bob Marley e que não tinha o reconhecimento que merecia por causa da sombra de Bob. Isso é verdade ou Bob Marley era simplesmente melhor como compositor e showman?

Sem dúvida, Bob era um showman mais carismático. Peter tinha uma inveja imensa de Bob, chegando ao ponto de dizer que Bob recebia mais atenção do que ele porque "era branco". Mesmo que ele tenha ensinado algumas batidas de guitarra, o verdadeiro professor de Bob - antes mesmo que ele conhecesse Peter - foi o Pai do Reggae, Joe Higgs. Joe recebia de um amigo mútuo chamado Errol para ensinar Bob em 1959. E ele ensinou todas as coisas necessárias para que Bob se tornasse o artista disciplinado que ele de fato virou: técnica com microfone, de palco, harmonia, composição, dança. Tudo.

Em 2010, o Uprising completa 30 anos. Qual a importância deste álbum em particular, dentro da discografia de Bob Marley?

Bob era um profeta e sabia que não viveria muito. Ele disse a dois jovens amigos, em 1969, quando tinha 24 anos, que morreria aos 36 anos. Seu último disco era repleto de presságios e despedidas, da visão do trem do Sião ("Zion train") vindo em sua direção, a "Bad card", "We and dem" e "Real situation", sem mencionar a etérea "Redemption song". Mas a mensagem mais profunda está em "Work", música escrita pelo antigo amigo e percussionista "Seeco" Patterson. Ele compôs enquanto vinha a Kingston num mini-ônibus e contava as milhas: "Five miles to go, four miles to go, three miles to go..." (Cinco milhas para chegar, quatro milhas para chegar, três milhas para chegar). Quando ele chegou ao estúdio, cantou os versos para Bob que, imediatamente disse que gravaria a faixa. "Mas", disse a Seeco, "troque milhas por dias". "Work" fez parte do medley que encerrou seu último show (Pittsburgh, 23 de setembro de 1980), como se ele contasse os últimos dias de sua vida.

Por que é tão bom falar sobre Bob Marley?

Porque nunca houve um artista com a força, a pureza e o senso de propósito de Bob Marley, que foi capaz de alcançar tantas pessoas de diferentes credos, cores e nacionalidades. Ele deu voz a quem não tinha e é, sem dúvida, o "Artista do Século".

Trechos de entrevista
do jornalista, ator, escritor, palestrante e arquivista Roger Steffens
Para o site www.obaoba.com.br